sexta-feira, 4 de julho de 2008

O escritor.

Os primeiros ensaios estão por aí algures. É ainda a primeira tentativa para a estrutura final, que será mais ou menos nestes termos.
É um bocadinho grande, quem não tiver pachorra para ler não se preocupe que eu tb não ;)

O escritor

Ela estava sozinha, estava tudo na mesma. A mesa de café era a mesma, em frente ao mesmo sofá de pele coçado pelo o uso, em cima da mesa, objectos tão familiares, a taça de prata com flores secas a cheirar a jasmim, o cinzeiro de vidro martelado e um enorme livro de capa em coro. A luz filtrada pelas mesmas cortinas laranja, tingia-lhe o cabelo loiro de ruivo fogo. A sala continuava com o mesmo tom creme que ele escolhera, o mesmo tapete em vários tons de laranja, o mesmo aparador encostado á parede em frente do sofá, onde repousava com ares solenes uma velha e possante televisão a preto e branco.
Abriu a carta devagar, com um fechar de olhos e um profundo suspiro preparou a mente para ler aquelas ultimas palavras.
Os livros espalhados pelo chão, parecendo desarrumados, mas arrumados em ordem literária eram os de sempre, sempre os mesmo, que ele lia e relia para manter a sua cabeça arrumada.
A secretaria vazia, enfrentando a janela da varanda tinha ainda fresco o cheiro da tinta sangrenta com a qual ele sangrara tantas folhas, repousando sobre um monte de papel branco, estava como sempre a perfeita lança de prata descansando.
Poisou a carta sobre a mesinha e fechou os olhos, recordando-o.

Sentado em frente da secretária de carvalho pesada, afaga a folha em branco, um folha sem nada. Com os dedos pesados pega na caneta prateada, rola-a nos dedos, sente-lhe as marcas. Ouve ao longe o cantar do seu fado, o ronronar do seu passado, empurrado para os seus ouvidos em brisas suaves ou furibundas, batendo como as ondas do mar nas membranas finas dos seus tímpanos, fazendo-as vibrar. Fecha os olhos, reclina-se na cadeira, deixa as imagens correr, imagens perfeitas. Constrói devagar, coisas vistas, coisas inexistentes, coisas já feitas.
Lá fora o mar ruge, o vento uiva, a terra verde corre, o céu azul desmaia o universo para em solene reverencia.
Sem os sentidos não era ninguém, ninguém lhe apaga os sentidos. Os momentos vistos, ouvidos, divinamente saboreados quer os doce quer os amargos.
A caneta toca a folha, os seus olhos abrem num rompante, as palavras enrolam-se nos pulsos, a sua boca forma um sorriso, o seu braço contrai em impulsos fazendo dançar a fina lança de prata, ele serra os dentes e mete a faca. Mais fundo, cada vez mais fundo. A folha sangra em tons de azul.

Que as suas ultimas palavras fossem para ela? porquê?
O silêncio era palpável dentro da casa, que se mantinha a mesma, o seu cheiro a passado encrostado nos forros do sofá, nas paredes, no pó assente nos moveis, nos livros, nos quadro velhos pendurados nas paredes.
Pegou de novo na carta, com um movimento solene.
Que lhe quereria ele contar que não lhe podia ter contado em vida?
Falaram tanto, sobre tanta coisa, que lhe teria ele escondido durante todo este tempo.
Às vezes ele dizia-lhe que ela era demasiado nova. Ela não entendia. Demasiado nova para quê?
Para me ver - disse uma vez enigmaticamente.
Olhou de volta a secretaria de carvalho pesada. Sentou-se na sua frente fechando os olhos como ele fazia antes de se atirar às folhas como um animal esfomeado.
Lembrou-se dos serões em que ela, sentada no sofá lia Cervantes, enquanto ele esquartejava furioso, pedindo-lhe malgas de café e copos de água, fumando descontrolado. Eram os “espasmos do cérebro” dizia.
Quase lhe sentia o cheiro do after shave...
Nunca disse que o amava, nunca teve essa coragem, por tantas razões, todas elas um bocado parvas. Porque ele era mais velho, mais inteligente. Porque se sentia tola perante a profundidade e a selvajaria dos sentimentos, da sabedoria, do conhecimento profundo que ele tinha sobre o amor humano.
Por isso reduzia-se à sua insignificância de pupila apaixonada em segredo.
Pegou no envelope. Estava na altura de ler aquilo.
Tirou com honras de estado o papel.
Estava impecavelmente dobrado em três.
Começou a ler:

Meu coração,

Estou cansado da vida, estou já no fim do meu livro, por isso, como escritor escrevo, sobre a mesa do meu leito, as minhas ultimas palavras, as que nunca pensei escrever.
Há muito tempo que ando para te dizer, mas não pôde ser. Há tempo que se me engasgam as palavras, que me sufocam os sons, mortos ainda no pensamento. Há muito tempo que te queria ter dito, mas sou covarde, sou um pobre de espírito a quem Deus não dará o reino dos céus.
Há muito tempo que esperava a oportunidade para te falar, mas passavas por mim com um sorriso que me calava.
Calava-me o teu sorriso com o peso da sua juventude, com a força da sua tenra idade.
Agora que fiquei sem tempo, agora neste ultimo segundo antes do fecho eterno dos meus olhos, não te vás, não sorrias para que o teu sorriso não me mandes calar, deixa-me dizer-te. Senta-te na beira da minha cama branca e limpa para que te diga com a pouca voz que ainda tenho, no desespero deste ultimo momento.
- Amei-te durante todo este tempo.
Caem-me já as folhas das mãos, caem-me as pálpebras sobre os olhos, cai-me a escuridão na mente...Vou...
Fim

Para sempre teu meu amor,
O escritor

Cai-lhe a folha da mão, caem-lhe as pálpebras sobre os olhos, cai-lhe o vazio no coração

13 comentários:

joshua disse...

Joaninha, sinto-me como esse escritor, desfalecendo e morrendo aquando da palavra 'amei-te'.

Desfaleço. O meu desemprego consumou-se. É como uma morte não ter como ganhar o sustento.

PALAVROSSAVRVS REX

Joaninha disse...

Josh....Gostava de dizer alguma coisa inteligente e sensivel e simpatica que te levantasse a moral. Mas já estive aí onde estás agora, é duro eu sei, posso dizer-te isto, ombro posso oferecer...

Abobrinha disse...

Joshua

Lamento muito. É uma situação lixada e estou como a Joaninha: não há nada que se possa dizer que minimize a situação. Boa sorte.

joshua disse...

Foi um dia pesado, Joaninha e Abobrinha, bem pesado e triste.

Obrigado pelas boas palavras.

PALAVROSSAVRVS REX

Krippmeister disse...

Coragem REX.

joshua disse...

Linda Joaninha, relativamente àquilo, claro que sim. Eu vou bater a todas as portas até que alguma se me abra.

Transformei sofrimento em literatura. Por que me não hão-de transformar a literatura sofrida em sustento, progresso, dinheiro, bem-estar, vida melhor?!

OBRIGADÍSSIMO!

PALAVROSSAVRVS REX

António Inglês disse...

Joaninha

Realmente não li na integra mas li meio atravessado.
Ao fim de tanto tempo cá venho desejar-lhe as maiores felicidades e dizer-lhe que já faltam mesmo poucos dias para ir de férias lá para as nossas "bolas de berlim", Vila Praia de Âncora, Afife, Caminha, Moledo... enfim o Minho no seu melhor....
Quanto ao REX, lamento o que está a passar mas melhores dias virão.
Isto está mau, mas só para alguns porque muitos há que nem sentem a crise por muito dura que ela seja.
Há-de reconquistar o lugar a que tem direito estou certo.
Deus a quem promete não falta.
Um abraço
António

Joaninha disse...

José

que bom te-lo de volta por aqui!

antonio ganhão disse...

Joaninha, como sempre bem conseguido, mas a precisar de alguma revisão nas concordâncias. Gostei particularmente da carta e deste bocado:
A caneta toca a folha, os seus olhos abrem num rompante, as palavras enrolam-se nos pulsos, a sua boca forma um sorriso, o seu braço contrai em impulsos fazendo dançar a fina lança de prata, ele serra os dentes e mete a faca. Mais fundo, cada vez mais fundo. A folha sangra em tons de azul.
Bom ritmo, boa sonoridade e contenção, sente-se uma a poesia na tua prosa.

Joaninha disse...

António,

estamos de acordo, tenho estado a ler e já o corrigi bastante. Mas a versão final não será postada aqui, será postada noutro local, quem sabe aonde...hihihi, não é Krippa?

alf disse...

Olha, já escrevi várias vezes este comentário :) :) e depois apago:(

Está muito bom. Embora me pareça haver uma preocupação excessiva em conseguir «algo de bom». Tens veia poética, imaginação, poder metafórico... deixa fluir, deixa a escrita escorregar para que a leitura deslize. Não te esforces enquanto escreves para que o leitor não sinta o teu esforço. Podes depois esforçar-te na revisão.

Será que são bons conselhos? É que eu sou um nabo a escrever... só sei fazer teorias...

Joaninha disse...

Alf meu amigo,

Nunca tenhas "medo de criticar" de forma inteligente. Os texto estão aqui tambem para isso. E tu és daqueles "criticos" que eu ouço. Obrigada pelo comentário e pelas sugestões.

alf disse...

Ai tu queres crítica? Então espera lá hehe... estou farto de pensar no teu texto, de pensar nos meus, de pensar como eram quando comecei a escrever, como tem evoluido as minhas preocupações de escrita... Livra, mulher, tu tens-me dado que fazer aos miolos! rsrsrs

Cada um tem de buscar os caminhos onde os seus talentos melhor se revelam. Eu não tenho talento literário, não sei fazer belas metáforas, o meu vocabulário é limitado, a poesia não brota da minha pena (com pena minha); e tenho grandes dificuldades em jogar com a afectividade do leitor.

Quando comecei a escrever, escrevia a pensar em mim, em pôr cá fora o que tinha na cabeça; depois comecei a preocupar-me cada vez mais com o leitor.

O escrever no blogue foi importante para me dar uma melhor percepção do que seja «o leitor»

A minha grande procupação é conseguir manter o leitor interessado. Eu tenho um grande desafio, tentar expor assuntos que não interessam nada à generalidade das pessoas mas de forma a conseguir a sua adesão.

Para isso, procuro em cada parágrafo despertar a curiosidade para o parágrafo seguinte, «agarrar» o leitor logo a partir da primeira linha. O que não é nada fácil.

Neste teu texto, repara que o antónio inglês diz que leu «meio atravessado». Essa é a critica mais importante que te fizeram. Significa que o teu texto não o «agarrou». Tens de ir investigar porquê.

Começas com uma descrição de algo banal. O leitor pergunta-se logo: porque estou eu a ler isto? Na altura em que esta questão fica sem resposta, já perdeste o leitor.

Repara nos textos dos jornalistas. O cabeçalho tem de fornecer a razão para ler a notícia; as primeiras linhas têm de aguçar o apetite. Uma vez este aberto, o leitor come tudo o que vier a seguir.

Ou seja, é preciso começar por despertar o desejo. Não tiveste mais de 1100 pontos no teste rsrsrs? Já imaginaste sexo sem despertar o desejo primeiro?


Bem, isto é como eu, escritor por necessidade e não por talento, encaro a escrita. Tu tens outros trunfos, podes usá-los doutra maneira.

Uma última nota: quando escrevo procuro ter alguma coisa para dar ao leitor. Ou emoções, fúteis ou profundas, ou a partilha de uma experiencia que lhe possa interessar, qualquer coisa que interesse aos outros.

A escrita raramente vale por si, mesmo que seja muito bela, ela vale sobretudo pelo que transporta.

E já pensaste no curso de escrita creativa do Luis Carmelo? Não sei como é que ele faz aquilo, mas sai-se de lá com uma autoconfiança acrescida e uma consciencia mais profunda. Claro que ele não dá talento a quem não tem, como eu, mas repara como a escrita do António tem evoluido.

(cursos pela net, no instituto camões e não só; e baratinho)

Pronto, já despejei um bocadinho da minha experiencia. Não me leves muito a sério, porque és muito melhor do que eu a escrever.