Agora já não. Agora tudo parece ter-se banalizado. Até mesmo o nada, fonte
de tanta escrita, se transformou numa simples ausência. Já nem me pergunto de
quê, de quem, de que forma o ausente se ausenta deixando nos espaços onde
habita apenas vácuo.
Procuro-te.
Tu, coisa, objecto, ser, simples momento. Tu que me farás encostar de novo
a caneta ao papel, entusiasmada.
Toda esta banalidade pesa nos ossos.
Grilhões de tédio prendem-me os pés com correntes de “casas dos segredos” e
“escândalos políticos, greves, crises, troikas”.
Coisas mundanas, chatas, aborrecidas.
E eu arrasto, arrasto, sem levantar os olhos alto, pois que me envolve o
ócio intelectual, numa capa sinistra de obrigação mental, disciplina férrea de
pensamentos ordenados, explicativos dos meandros da burocracia, da legalidade,
sordidamente misturados com contagem de tostões ao fim do mês, contas a pagar,
comida para comer. Guardando horas parcas para um pouco de sono, um pouco de
olhos fechados, cérebro desligado, corpo prostrado.
Um, dois, três começa de novo, trânsito infernal, barulhos, sons, urros. E
uma avalanche das mesmas banalidades, aborrecidas, digo outra vez, aborrecidas!
Com os neurónios envolvidos por esta gosma, incapaz de um arranque livre,
solto. Com o pensamento, formatado, engaiolado, a perder sinapses, aos milhares
de milhão por segundo.
Aconchega-me a alma, a certeza da altura em que, em rompantes garbosos,
achava escrever manuscritos, contos, poemas.
Maus, bons, razoáveis ou mesmo muito pouco, pelo menos eram meus,
manifestações espontâneas da minha existência interior insana, entusiasmante, excêntrica.
Agora as articulações estão calcinadas, o olhar está maculado, não há
rompantes, nem ideias brilhantes, nem momentos de puro êxtase literário.
Há sim, papel com 25 linhas contados, trancado em cada parágrafo, sem
espaços em brancos, rubricado e assinado, com assinatura reconhecida, documento
autenticado.
Mas eu procuro-te.
A ti, coisa, ser, momento, porque eu preciso de, sob pena de uma morte
intelectual precoce, sentir que ainda consigo um pouco de loucura, ainda
consigo um pouco de liberdade, ainda consigo voos extremos de adrenalina
salpicados pela simples visão de um qualquer por do sol bem esgalhado.
2 comentários:
Há alturas assim, mas não são irreversíveis. Aliás, só tu conseguirias lamentar-te da perda de fervor literárioo num ensaio de alto fervor literário. ;)
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